MUNDO DO TRABALHO
No mesmo dia em que o funcionalismo público pretende deflagrar uma greve nacional contra a reforma administrativa, o Supremo Tribunal Federal (STF) pode julgar, na tarde desta quarta-feira (18), uma ação assinada pelas siglas PT, PDT, PSB e PCdoB que questiona a contratação de servidores do Estado por meio das regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Ajuizada no início de 2000, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adi) 2135 traz especificamente um argumento técnico: ela contesta um vício formal atribuído à votação da Emenda Constitucional (EC) 19, promulgada pelo Congresso Nacional em 1998 por meio da PEC 173, que liberou a alteração dos regimes jurídicos diferenciados para o funcionalismo.
Entre outras coisas, os partidos argumentam que a aprovação da PEC 173 durante o então governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) desrespeitou o rito legislativo porque a pauta não teria sido aprovada, na Câmara dos Deputados, pelo quórum mínimo de 308 votos estipulados pelas regras regimentais.
As legendas apontam que a votação contou com dez apoios a menos e que uma manobra legislativa conduzida pelo relator da pauta, o então deputado federal Moreira Franco (PMDB-RJ), fez com que a medida seguisse adiante, rumo à promulgação.
O artifício abriu passagem para que os entes federados – União, estados e municípios – contratassem servidores via CLT, em vez de adotarem o regime estatutário. Típico de organizações privadas, o regime celetista não prevê, por exemplo, estabilidade garantida aos funcionários públicos, como ocorre no outro formato de contratação.
Crítica da regra aprovada pelo Congresso em 1998, a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Judiciário Federal e do Ministério Público da União (Fenajufe) aponta que a medida ajuda a precarizar a administração pública, fragilizando o vínculo dos trabalhadores com a máquina estatal. A entidade é uma das organizações civis que atuam como amicus curiae no processo referente à Adin 2135.
“A gente espera que seja confirmada pelo Supremo a permanência da contratação do serviço publico como ela foi concebida na Constituição de 1988. Isso é a garantia pra população de que a gente vai continuar tendo um serviço público que tem dificuldades, é verdade, mas que precisa ser aperfeiçoado, e não extinto”, diz o coordenador jurídico e parlamentar da entidade, Ramiro Lopez, em entrevista ao Brasil de Fato.
Trâmite
A EC 19 promulgada pelo Congresso em 1998 foi suspensa pelo STF em 2007, por meio de uma liminar que entendeu o processo legislativo em questão como algo ocorrido fora das regras. De lá pra cá, o debate que envolve a situação jurídica foi jogado em um limbo, sem uma decisão definitiva que fechasse questão sobre o caso.
No ano passado, a Corte tirou o processo da gaveta e iniciou o julgamento do mérito do pedido dos partidos, que recebeu voto parcialmente favorável da relatora, ministra Cármen Lúcia, em setembro de 2020.
Na ocasião, a magistrada considerou como inconstitucional o trecho da Emenda 19/1998 que eliminou o regime jurídico único da administração pública. Na prática, ela manteve a liminar de 2007, defendendo a invalidação do artigo 39, inserido pela EC 19 na Constituição. A restauração desse trecho conforme a redação original da Carta Magna mantém o regime estatuário único para servidores.
“E a defesa do partido é de que não só o artigo 39, mas diversos outros pontos [da EC 19] estariam viciados, seriam inconstitucionais. A gente entende que a gente está discutindo uma operação legislativa de mais de 20 anos atrás e tem que prezar por segurança jurídica, então, a gente entende, inclusive, como razoável a decisão da ministra Carmen”, afirma o advogado Miguel Novaes, do escritório que representa o PT na ação.
Na sequência, porém, após a apresentação do parecer da relatora, o julgamento foi suspenso, voltando à tona somente neste segundo semestre de 2021, mesmo cenário em que o governo Bolsonaro tenta emplacar a reforma administrativa na Câmara dos Deputados.
A medida é duramente combatida por setores civis e de oposição porque extingue uma série de direitos dos servidores públicos nos diferentes níveis de atuação – municipal, estadual e federal –, como é o caso da garantia de estabilidade funcional.
Adi 2135 & reforma administrativa
Para grupos de interesse envolvidos com a Adi 2135 e ouvidos pelo Brasil de Fato, a marcação do julgamento da ação para este período seria apenas uma coincidência, uma vez que a avaliação da pauta pela Corte iniciou ainda no ano passado. Mas a matéria ressurge em meio a um contexto de forte pressão da equipe econômica da gestão Bolsonaro por uma maior desidratação da estrutura do Estado.
Para a Fenajufe, uma eventual manutenção da liminar de 2007 por parte do plenário do STF favoreceria a luta contra a reforma administrativa do governo.
É que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 32/2020, nome de batismo da reforma que tramita no Congresso, cria novos mecanismos de contratação para servidores públicos. Para viabilizar a mudança, a medida modifica a redação do Artigo 39 da Constituição Federal, que trata do regime jurídico único, e instaura outras modalidades, criando um regramento distinto para atividades diferentes.
Pela PEC, apenas as carreiras típicas de Estado, por exemplo, terão direito a estabilidade. Tais cargos correspondem a funções como promotores de Justiça, magistrados, policiais, etc.
Na Corte, apesar da liminar concedida em 2007, o cenário atual em torno da Adi 2135 é considerado árido para os partidos de oposição. Isso porque o Supremo sofreu alterações na sua composição de lá pra cá e tem hoje diferentes magistrados com tendência neoliberal.
Entre outras coisas, os ministros já deram aval, por exemplo, à Lei da Terceirização (Lei 13.429/2017), que, em junho do ano passado, foi chancelada no plenário por um placar de sete votos a quatro. A pauta é uma das mais questionadas pelas entidades sindicais naquilo que se refere à agenda trabalhista da administração pública.
Para além das dificuldades políticas que podem ser encontradas hoje pela ação judicial dos partidos de oposição no STF, a Fenajufe acredita que, se a maioria dos ministros votar de acordo com Cármen Lúcia, a decisão poderia ajudar a turbinar o debate de ideias dos opositores contra a PEC 32.
“Esse resultado poderia significar um fortalecimento da nossa luta pela manutenção da existência do serviço público, do fortalecimento do Estado nacional. Nos ajudaria, inclusive, na batalha dentro do Congresso e ganharíamos argumentos também pra ajudar no diálogo com a população”, afirma Ramiro Lopez.
O dirigente interpreta a disputa atual em torno da reforma administrativa como uma reedição do que o movimento trabalhista do funcionalismo público viveu no final dos anos 1990, no contexto da PEC 173, considerada a reforma administrativa do governo FHC.
“Na época, todo esse trabalho que a gente faz hoje contra a PEC 32 se fez também, ou seja, vinte anos atrás. E surtiu resultado, de modo que o governo não conseguiu os 308 votos necessários. Agora estamos na luta de novo.”
Edição: Vivian Virissimo
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